Multiplicação e diferença: para além da “condição estaminal”
Observemos, através de um olhar parabiológico, as estratégias que o próprio corpo utiliza para multiplicar e como o faz em nome da variação, da adaptação e da evolução.
A multiplicação biológica permite o aparecimento da diferença, não é um processo que se limita à replicação, à repetição. E é, curiosamente, a repetição o mecanismo que engendra a variação: a repetição transporta no seu seio o seu contrário O movimento de um estado ao mesmo estado (a repetição) admite a transformação (a variação), como se, durante o percurso previamente estabelecido, surgissem novas possibilidades que apontassem para outros trajectos e outros destinos.
O corpo é, no início, uma célula: o ovo que resulta da fusão de outras duas (chamadas germinativas). Transporta cada uma delas metade do material genético que se encontra nos cromossomas (das células somáticas). Ao número e arranjo dos cromossomas dá-se o nome de cariótipo, e este é uma característica da espécie.
Por paradoxal que pareça, se é verdade que o cariótipo é o denominador comum da espécie, quer dizer, todas as células normais dos indivíduos da mesma espécie apresentam o mesmo cariótipo (exceptuando as células germinativas), também é verdade que ele é a fonte da variabilidade interpessoal Este conflito aparente entre fixismo e diversidade foi resolvido com a descoberta de uma molécula com propriedades bioquímicas insuspeitadas: o DNA.
O DNA é o agente da grande economia semântica com que o corpo é construído. Com quatro letras (quatro nucleótidos) escreve-se o texto mais complexo do Universo, sendo o significante global dessa linguagem a própria molécula de DNA. Os significados (ou melhor as relações significado-significante), todavia, ainda estão a ser cartografados, através de uma das maiores aventuras (talvez uma aventura monótona!) a que o Homem se devotou, conhecida pelo nome de projecto, "Genoma Humano", com o qual se pretende iluminar a nossa identidade mais profunda, aquilo que de facto somos. Mas ele não é um programa, como inicialmente se pretendia, mas um conjunto de dados, de potencialidades que se vão revelando, no confronto com o ambiente dinâmico que a ecologia celular vai revelando. O programa acaba por ser a disponibilidade que o genoma oferece quando interactua com o ambiente celular. Se somos próprios, e não uma colagem mais ou menos aleatória de fragmentos, não só ao genoma humano o devemos, mas sim à relação que significante e significado vão estabelecendo numa interacção espiral. O significante dá ao significado a possibilidade de se ressignificar. A mesma morfologia admite no fixismo da forma a variabilidade funcional, a variabilidade discursiva (dos discursos do corpo). Dois gémeos homozigóticos, apesar de terem a mesma forma (ou muito idêntica), são diferentes, mesmo quando o meio os pretende formatar na semelhança absoluta.
Apesar de o código genético usar como molde a própria sequência molecular, por forma a que a cópia seja igual ao original e funcione de seguida como um novo original num processo que se autoperpetua dentro do máximo rigor, a intervenção do exterior, do meio, é necessária como marca de individuação que permita ultrapassar a identidade clónica. E se é esse rigor que permite ter tudo no lugar, os olhos no lugar dos olhos, o nariz no lugar do nariz, a boca no lugar da boca, é a variabilidade da recombinação genética (mesmo sem mutações) que permite a construção da diferença, enfim, o elogio da multiplicidade.
Não se fale, assim, em "património genético da humanidade", a propósito do genoma, como quem fala de um objecto invariante que importa cartografar e descodificar para fixar. Isso seria negar-lhe a possibilidade de ser um património fazedor de cultura, porque o que caracteriza o património cultural da humanidade é a sua radical diferença. O Homem só conseguirá produzir património cultural, se não for o resultado dum genoma invariante. Com efeito, não há um Genoma Humano, há vários Genomas Humanos. É isso que nos salva da monotonia replicante de qualquer "Admirável Mundo Novo"
Mas voltando ao ovo. Sendo ele a primeira célula, a precursora de todas as outras é, também por isso, a mais potencial, a menos especializada, com uma determinação obsessiva, dividir-se, tendo originado ao fim de 5 dias 16 sucessoras (chamando-se ao conjunto mórula).
O Ovo é nesse sentido o precursor daquilo a que poderíamos chamar a “condição estaminal”. E essa condição é a possibilidade de uma célula funcionar como A Proposta do Mundo. Mas o mundo não é todos os mundos ao mesmo tempo. O mundo é escolha. É diferença. A célula estaminal só faz sentido porque sendo totipotencial, podendo ser tudo, é depois orientada para ser uma “coisa”. Não se pode ser tudo ao mesmo tempo..
Por isso, importa, agora, às novas células, condicionar a alquimia quase delirante das suas baterias metabólicas, restringindo o fenótipo, o espectro proteico, e passar a produzir só uma fracção que funcionaria como a sua imagem de marca. É o princípio da especialização celular, ou seja, do aparecimento do tecido. O tecido é, então, constituído por um conjunto de células que se diferenciaram em determinada direcção apresentando semelhanças morfológicas e funcionais e por uma matriz, quer dizer, uma estrutura extracelular que suporta e integra o elemento celular e que é por ele produzida.
Uma multiplicação sem especialização, sentido e destino é, em termos histológicos o cancro. O cancro é uma espécie de monstro dos tecidos, de micromonstro com macroconsequências. É a forma da multiplicação desnorteada, sem regras. O cancro subverte a natureza auto-organizadora dos seres vivos, porque se furta às orientações (às informações) do código genético. Ele é a satisfação da pulsão replicativa primária sem obediência a um projecto. É a tirania da célula sobre o tecido, e do tecido sobre o órgão.
È por isso que o cancro (a célula cancerígena),no desejo de ser tudo, acaba por antecipar o nada, a morte.
Paulo Cunha e Silva
Novembro de 2008
Multiplication and difference: beyond the “stem condition”
Let’s observe, through a parabiological look, the strategies that the body itself uses to multiply and how it does it in the name of variation, adaptation and evolution.
The biological multiplication allows the emergence of the difference; it’s not a process that is limited to the replication, to the repetition. And it is, curiously, the repetition the mechanism that produces variation: the repetition transports in its heart its opposite. The movement of a certain state to the same state (the repetition) admits the transformation (the variation), as if, during the previously established way, new possibilities, that would aim other paths and other destinies, would turn up.
The body is, in the beginning, a cell: the egg which results of the fusion of two other cells (so called germinative). Each of them transports half of the genetic material that can be found in the chromosomes (of the somatic cells). We call chariotype to the number and arrangement of the chromosomes, and it is a characteristic of the species.
As paradoxical as it may seem, if it is true that the chariotype is the common denominator of the species, meaning that all normal cells of indivivuals of the same species present the same chariotype (germinative cells apart), it is also true that he is the source of the interpersonal variability.
This apparent conflict between fixism and diversity was solved with the discovery of a molecule with unsuspected biochemical properties: the DNA.
The DNA is the agent of the great semantic economy with which the body is made of. With four letter (four nucleotides), the most complex text of the whole universe is written, and the most global significant of that language is the DNA molecule itself. The meanings (or better saying the relations between significant and significance), however, are still being registered through one of the biggest adventures (perhaps a monotonous adventure!) Man has dedicated himself to, known as the “Human Genome”, with which we aim to illuminate our most profound identity, what we really are. But it is not a program, as we supposed before, but a gathering of data, of revealing potentialities in confrontation with the dynamic environment that the cellular ecology reveals. The program ends up being the availability that the genome offers when interacting with the cellular environment. If we are exact, and not a random collage of fragments, we owe it not only to the human genome, but also to the relation established between significant and significance in a spiral interaction. The significant gives to the significance the possibility of re-significance. The same morphology admits, in the fixism of the form, the functional variability, the discursive variability (of the body’s discourses). Two homozygote twins, despite having the same form (or very identical), they are different, even when the environment tries to format them in absolute similarity. Even though the genetic code uses as mould the molecular sequence itself, so that the copy is the same as the original and works afterwards as a new original in a process that self-perpetuates in the maximum precision, the intervention of the exterior, of the environment, is necessary as an individualization mark that allows the overtaking of the clonic identity. And it is this precision that allows everything to fall in its place, the eyes where the eyes should be, the nose where the nose should be, the mouth where the mouth should be, it is the variability of the genetic recombination (even without mutations) that allows the construction of the difference, in short, the praise of the multiplicity. Let’s not say then “genetic heritage of mankind”, with regard to the genome, as if we meant an invariable object that has to be registered and decodified to fixate. That would be denying it the possibility of being a heritage that produces culture, since what characterizes the cultural heritage of mankind is its radical difference. Man will only be able to produce cultural heritage, if he is not a product of an invariant genome. Indeed there is not one Human Genome, there are several Human Genomes. That is what saves us from the replicated monotony of any “Brave New World”.
But returning to the egg. Being the first cell, the precursor of all the others, it is also for that reason the most potential, the less specified, with an obsessive determination for splitting, having originated in five days sixteen successors (the whole is called morula). The egg is in this sense the precursor of what we could call “the stem condition”. And that condition is the possibility of a cell working as The Proposal of the World. But the world is not every world at the same time. The world is choice. Is difference. The stem cell only makes sense because being totipotential, being able to be everything, is then directed to be one “thing”. It can’t be all at once.
For that reason, it is then the new cells duty to determine the almost delirious alchemy of its metabolic batteries, restricting the phenotype, the protein spectrum, and to produce only one fraction that would work as its brand image. It is the beginning of the cellular specialization, in other words, the arrival of the tissue. The tissue is, in this way, constituted by a gathering of cells that have become differentiated in a given direction, presenting morphological and functional similarities and by a womb that is an extracellular structure that supports and integrates the cellular element and is by it produced.
A multiplication without specialization, sense or destiny is, in histological terms, cancer. The cancer is a kind of tissue monster, of micro-monster with macro-consequences. It is the form of the off course multiplication, without rules. The cancer subverts the self-organizing nature of living beings, as it evades itself from the orientations (the information) of the genetic code. It is the satisfaction of the primary replicative drive without obedience to a project. It is the tyranny of the cell over the tissue, of the tissue over the organ.
That is the reason why cancer (the cancerigenous cell), wishing to be all, ends up anticipating nothing at all, anticipating death.
Paulo Cunha e Silva (translation by Cátia Peter da Cruz)
Novembro de 2008
| Sombras |
A ausência de espaço que muitas vezes estamos submetidos e as amarras que nos são colocadas como se fossemos os agrilhoados em “a alegoria da caverna” remete-nos para um local hostil.
As sombras que são os reflexos na passagem de personagens que se questionam da sua permanência no espaço e fazem alegorias ao que são e da sua existência. A sucessiva passagem das personagens e o acumular de sugestões e ideais que elas mesmo foram construindo no seu imaginário, faz com que vão acumulando camadas sobre camadas, que irão formar a sua identidade.
Faz-se um caminho nem sempre linear, pois as sombras são sempre as mesmas, mas as personagens vão formando as suas à sua maneira de uma forma única que forma um colectivo diversificado e com as suas especificidades.
Poderão os reflexos ser imaginados, poderão não haver sombras, poderá, ainda, ser ilusão o que vimos, mas mesmo assim questionamo-nos onde fica a saída para uma realidade de cada personagem. Será que a existência nos remete para uma realidade ou se pelo contrario, somos nós que construímos a realidade ou a realidade não existe?
| ferreira de almeida | Maio, 2009 |